Não é preciso ser Sherlock Holmes para compreender que a comunidade gay tem um grande problema: a homofobia internalizada. E se você, homem homossexual, não sente atração por afeminados, você é homofóbico, sim.
Caso tenha se sentido ofendido ou atacado pela acusação de ser homofóbico, sugiro uma breve análise sobre como é possível que você contribua com a continuidade de uma sociedade machista. Isso mesmo. Machista. Parece até cômico afirmar que algo tão familiar para nós, a frase "não curto afeminados", seja algo machista, uma vez que a aversão se faz a outros homens, e não mulheres. E essa culpabilidade é de todos nós, inclusive da comunidade gay, que criou a visão do gay másculo, mas falhou em lembrar da própria história e da pluralidade de si, gerando, assim, o gay fora do meio e distanciado das outras bichas.

No dia 28 de Junho de 2020,
Ciro Gomes relembrou na live junto ao PDT Diversidade que quando mais jovem, em Sobral/CE, homossexuais só podiam se assumir caso aceitassem esteriótipos caricatos, espalhafatosos e afeminados. No Brasil, historicamente, a visibilidade de gays na mídia se deu da mesma forma. Todos lembramos de personagens como Seu Peru da Escolinha do Professor Raimundo, de Painho de Chico Anysio, Pit Bicha e Pit Bitoca, Vera Verão, Capitão Gay etc.
E nos Estados Unidos essa também foi a realidade de LGBTs. Até a metade do século 20, era comum homens discretos serem mortos devido à população descobrir que eles praticavam sexo com outros homens -
na Inglaterra ser gay só deixou de ser crime em 1967. Nos anos 50, aos 9 anos de idade, lembra
Cher, que os que se diziam gays eram diferentes dos outros; mais alegres, mais divertidos, cabeleireiros e maquiadores.

E a visibilidade desses gays nos EUA só foi possível com a publicação do livro Comportamento Sexual no Homem Humano, em 1948, por Alfred Kinsey. Nele, era possível ver que quase 40% dos homens entrevistados tiveram algum tipo de experiência homossexual e que cerca de 10% dos americanos entre 16 e 55 anos de idade eram exclusivamente gays por pelo menos três anos de suas vidas. Mas, ainda assim, os
entendidos tinhas que se contentar com a visão social de afeminado para serem aceitos publicamente. E o que muitos gays discretos e másculos não
entendem é que seus trejeitos masculinos não são tradicionalmente masculinos, mas conquistas de artistas que usavam o exibicionismo para mudar a ideia coletiva de que homens gays eram débeis. Como nos anos 50 com Tom of Finland, que durante os blackouts da Segunda Guerra Mundial fazia sexo com homens fardados, um fascínio seu. Tom foi um artista que ficou famoso com seus desenhos eróticos de homens gays que fugiam do esteriótipo da época. Eles eram fortes, másculos, fardados; usavam couro, andavam de moto e tinham o semblante de
bad boys.

Com o crescimento da visão político-social de que o homem gay também podia ser másculo e musculoso devido a Tom of Finland, ele passa a ganhar bem com suas obras apenas nos anos 70. O encanto de Tom por trabalhadores de construção, policiais e marinheiros se tornou popular com seus desenhos e a imagem do gay macho se tornou um fetiche dentro da comunidade gay. Diante disso, o fotógrafo Robert Mapplethorpe conseguiu criar um debate sobre o financiamento público de artistas "controversos" por mostrar o cenário sadomasoquista de Nova York com homens homossexuais.

Ele abordava o corpo e a homossexualidade de forma natural e procurava fugir dos padrões homo da época, seja em sua estética pessoal, como também em sua obra. Contudo, com a expressão artística de Robert em relação ao corpo do homem gay nu e do sexo gay, e da erotização do homem gay másculo e forte de Tom, grupos como o Village People, nos anos 80, passaram a satirizar a imagem super masculinizada do gay 'macho man' em suas músicas e vestimentas.
Os integrantes do grupo usavam uniformes e trajes de couro como resposta e, com a popularização da banda, passaram a ser vistos em meios de comunicação popular - cultura pop.
E assim como a Regra 34, na internet, a indústria pornô se inspirou intensamente nessa construção masculinizada do homem homossexual, comercializando essa ideia para as grandes massas consumidoras de pornografia. E é aqui onde você entra. O gay que recorreu à pornografia para compreender sua própria sexualidade e confeccionou sua masculinidade através dela, pois não tinha onde buscar referências de como nortear seus sentimentos por outros homens, já que nossa comunidade, infelizmente, ainda condena a prática e o afeto homossexual, tal como ridiculariza a imagem do gay na mídia brasileira através de figuras exacerbadas do que realmente significa querer bem a outro homem, deixando você à mercê de uma visão errônea e hiper sexualizada do gay macho.

Nós sabemos que a sociedade em que vivemos é construída sobre a percepção de que mulheres são inferiores aos homens, como também é contra qualquer traço associado à feminilidade. Há anos existe uma piada que diz que o homem não gosta de mulher, ele gosta de vagina, porque comumente é quase impossível associar homens e mulheres como iguais. O mesmo se aplica a gays no Brasil e no mundo. Em um estudo feito por
Francisco J. Sánchez e Eric Vilain, em 2012, sobre homens gays que agem como héteros, eles analisaram o quão importante homossexuais estadunidenses veem a aparência máscula em suas vestimentas e atitudes. Foi teorizado, desde os anos 80, que meninos gays tendem a não seguirem padrões sobre masculinidade na infância e são ridicularizados por isso, fazendo com que busquem se livrar de qualquer associação ao gênero feminino para evitar alienação. Tendo isso em vista,
Francisco J. Sánchez e Eric Vilain perceberam que a maioria dos gays entrevistados gostariam de ser mais másculos e menos femininos.

A Drag Queen Rita Von Hunty recomendou em um
vídeo o documentário
The Mask I Live In, que aborda não só como as mulheres são categoricamente inferiorizadas, mas também como qualquer concepção atrelada à feminilidade é rejeitada pela masculinidade tóxica, fazendo com que rapazes, inclusive homossexuais, tenham aversão a tudo aquilo o que socialmente eles entendem como vil, construindo, assim, uma ideia machista e homofóbica de que o viadinho afeminado é de somenos interesse, como também não é sedutor, pois a pornografia, que estabeleceu quem você é, coloca o afeminado em posição de menor relevância sexual.

Para se ter uma ideia de como a masculinidade e o
jeito de macho são extremamente sexualizados, a plataforma
Pornhub fez um levantamento em 2015 nos EUA sobre os principais termos pesquisados dentro da categoria gay, e é possível perceber que dos assuntos mais procurados, 20% fazem referência a homens heterossexuais e todos fazem parte do Top 6, sendo "
hétero primeira vez" o primeiro lugar.
Já em 2016, no Reino Unido, o
Pornhub mostra que dos doze assuntos mais pesquisados na ala gay, cinco é sobre héteros, sendo que três deles fazem parte do Top 3. O primeiro lugar também é "
hétero primeira vez".
Entendendo que vivemos em um corpo social que historicamente rechaça não só mulheres, mas também tudo aquilo que é feminil, inclusive em homens; e entendendo a trajetória de artistas homossexuais que buscaram se desligar dos esteriótipos danosos à comunidade LGBT+, mas acabaram criando fetiches de corpos gays masculinizados e propagados pela indústria pornográfica como único meio existente para absorção do que é o sexo gay -
Jameela Jamil inclusive declarou que um garoto aprender a fazer sexo via pornografia é como ele aprender a dirigir assistindo a Velozes e Furiosos - é possível entender sua constante busca pelo corpo ideal, seu grande esforço de se apresentar másculo perante à sociedade e seu perfil no Grindr que diz "Não curto afeminados. Nada contra. Apenas meu pau não sobe".

Consequentemente, não estou aqui para obrigá-lo a sentir atração por algo que você não se sente atraído, mas acredito que seja primordial refletir sobre o porquê você não é. De onde vem esse sentimento? Como ele foi construído? É claro que o processo de autocrítica é complicado e nem sempre traz respostas animadoras, pois, para isso, é preciso olhar ao seu redor e questionar o que te influencia - presente, passado e passado distante - a ser quem você é hoje. O que me motiva a descrever no Scruff parte da comunidade LGBT como "doentes mentais que acham que todo mundo tem que aceitar os atos insanos e tóxicos dessas aberrações doentes" ou me faz não gostar de "afeminados, travestis, drags e coisas do tipo"? Porque a homofobia é isso: "rejeição ou aversão a homossexual e à homossexualidade". E fundamentar sentimentos de rejeição contra traços homossexuais também é homofobia. Então ao justificar minha aversão à parte mais vulnerável da comunidade gay com um "nada contra, só não curto", eu estaria expressando uma homofobia internalizada que diz 'tudo bem em ser gay, a não ser que seja gay demais - ou feminino demais'. O mesmo se aplicaria ao racismo: normalizar e justificar atos racistas te faz racista. Historicamente o "nada contra" aponta que há algo contra sim, dado que não existe, a meu entender, qualquer evidência que sugira um fundamento saudável para a massiva aversão contra afeminados, mas há fundamento em ralação à misoginia.
Lamentavelmente, o uso do nada contra não é novidade para nós, e o que me entristece é a propagação dos mesmos discursos contra a própria comunidade. "Nada contra ser viado, só não na minha frente"; "nada contra, tenho até amigos que são"; "nada contra homossexual, mas quero minha casa em ordem - Jair Bolsonaro"; "nada contra, mas não me digam que isso é normal"; "nada contra, mas precisa beijar na rua?"; nada contra, mas...
não curto gordos, nada contra.
não curto coroas, nada contra.
não curto homens trans, nada contra.
não curto asiáticos, nada contra.
não curto travestis, nada contra.
não curto bissexuais, nada contra.
não curto magrelos, nada contra.
não curto não binários, nada contra.
não curto tatuados, nada contra.
não curto assexuais, nada contra.
não curto soro positivo, nada contra.
não curto novinhos, nada contra.
não curto peludos, nada contra.
não curto andrógenos, nada contra.
não curto drag queens, nada contra.
não curto negros, nada contra...
Todas as imagens neste post são provenientes de perfis reais do Grindr, Scruff e Hornet - Maracanaú/CE